Conto 2. O fogão de seis bocas e o portão automático. Estava parada em posição militar de continência diante da mesa do café, enquanto os patrões e os filhos conversavam sobre o filme assistido, num cinema de um shopping de luxo, na noite anterior. Falavam ansiosos e comovidos sobre a relação de uma empregada nordestina e uma família parecida com a deles. Um dos filhos, num dado momento, ficou rubro de vergonha, olhou em cumplicidade para ela e abaixou a cabeça em reprovação. A mãe dizia desdém: Imagina só fulana, sua filha estudando na mesma sala de fulano!? Só em filme, isso não tem nenhum cabimento. Nem se tivesse cota pra tudo que é favelado desse país. A patroa tinha toda razão de ir contra as cotas, pensou. Não disse palavra e sorriu. Voltou os olhos pro rapagão que já se levantava. Ele abanou com a cabeça, já de pé mandou um beijo para a mãe e também pra ela, que só assentiu com as pálpebras dos olhos. Manteve o posto, a compostura, mas por dentro gargalhava-se toda. Aprendeu desde meninica a não confrontar os patrões assim, de jeito direto depois de passar pela terceira casa. Tinham, ela e marido, acabado de comprar e instalar dois sonhos na sua, que era a última casa de reboco da Viela das Margaridas. Riqueza dela. Um fogão de seis bocas e o o portão automático. Nunca teve coragem de contar para os patrões, mas seus dois mais novos estavam no curso técnico e já empregados. E a mais velha, orgulho próprio seu, cursando o segundo ano de faculdade. Faculdade pública e estudava de dia. Entrou com cota sim, ela dizia de boca cheia, mas vai sair diplomada igualzinha as outras lá.
Repósito de fontes textuais, sonoras e imagéticas de processos de criação e difusão de Artes Autorais. Veículo de diáspora negra e as suas fricções, interações e apropriações no mundo contemporâneo.
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